Herdeiros vão à sala de aula por lições de gestão rural Destaque

Escrito por  Jul 30, 2019

Em plena época de colheita de milho e algodão na maior parte de Mato Grosso, principal produtor de grãos do país, 28 jovens fazendeiros largaram a lida para passar quase quatro dias em uma sala de aula em Cuiabá. Em pauta, a sucessão familiar, tema raro de ser estudado, mas nem por isso menos importante. Instalados em um hotel na capital mato-grossense, os herdeiros têm um encontro marcado com o temido embate de gerações que já provocou a falência de inúmeras propriedades rurais no país.

“Fazer sucessão familiar não é algo fácil. Os seus pais têm dificuldade em largar o osso e vocês querem pegar esse osso. Vocês vão estar na liderança do negócio da família num curto espaço de tempo”, disse aos alunos Renato Guimarães, presidente da Sinagro, distribuidora de insumos agrícolas com sede em Goiânia, e idealizador do curso “Academia de sucessão”. Durante a última semana, a reportagem do Valor acompanhou o primeiro módulo do curso.

E sucessão se aprende? “Não sei. Mas não quero apenas ser um filho de produtor que já ganhou as coisas prontas. A gente quer fazer a diferença”, disse Elisângela Kischel Fumagalli, de 31 anos, formada em agronomia desde 2011 pela Universidade Federal do Tocantins. A família de Elisângela produz soja, milho e milheto em uma área de 2.000 hectares em Luís Eduardo Magalhães, na região oeste da Bahia.

“Conciliar as ideias de três pessoas que pensam diferente é um desafio. A sucessão hoje é a nossa maior deficiência”, admitiu Leonardo Micharki, de 33 anos. Formado em direito no interior de São Paulo, o herdeiro ajuda a tocar uma fazenda de 1.300 hectares no Vale do Araguaia, voltada para a produção de soja e milho.

Na equação da sucessão, os agregados da família são um complicador. Cunhados, genros, noras, maridos e esposas ficam com um espaço incerto nos negócios. “Só entra no negócio se tiver capacidade para isso. Não vou dar um emprego só porque agora é da família”, disse um dos participante do curso. “Mas como fazer? Não quero deixar de casar, mas também não quero que meu marido seja herdeiro”, disse outra. “Minha mãe já repete o mantra: tem que avaliar se a namorada não vai querer alguma coisa no negócio”, brincou o herdeiro.

A recomendação do engenheiro agrônomo Sandro Al Alam Elias é que o papel de cada membro da família fique bem claro. Afinal, o acordado não sai caro. “Melhor sempre é sentar e conversar como serão as coisas e qual será a participação dos cônjuges”, disse ele, que é sócio da Safras & Cifras, consultoria especializada governança e sucessão familiar.

Nas aulas em Cuiabá, é a Safras & Cifras que organiza o curso, a pedido da Sinagro. Sediada no Paraná, a consultoria faz esse tipo de trabalho desde 2005. “No fim, todos querem que o negócio prospere, mas a comunicação precisa ser trabalhada”, acrescentou Rafael Homem de Carvalho, psicólogo da consultoria Safras & Cifras. Em 2018, a consultoria realizou cerca de 60 cursos do gênero pelo Brasil.

Para acompanhar as aulas em Cuiabá, Elisângela Kischel Fumagalli não apenas deixou o campo em um momento de expansão – a família está ingressando na pecuária em uma fazenda própria no Estado do Tocantins, como trouxe o irmão Marcos Antonio Kischel, de 36 anos, para as aulas. Em uma demonstração de como os problemas logísticos do país podem ser contornados pelos agricultores, os dois irmãos vieram de carro da Bahia, em uma viagem de três dias.

“Não foi fácil chegar, mas a união da família foi o que mais me motivou a vir”, afirmou Elisângela. Ela está nos negócios da família há apenas duas safras, o mundo dela já parou de ser contado em anos. Logo depois de formada, trabalhou seis anos em pesquisa na Círculo Verde Assessoria Agronômica & Pesquisa. O irmão fica no cotidiano do campo, e ela, na administração. O patriarca tem 67 anos e está ativo. “Mas é hora de começar a desacelerar, né? Largar o osso!”, disse ela.

Nos dias em Cuiabá, a ideia era aprender coisas variadas. As aulas versavam sobre comunicação entre as gerações, relação entre patrimônio e casamento, governança corporativa e balanço patrimonial. “O grande desafio é encontrar o equilíbrio entre o bem-estar da família e a eficiência empresarial”, disse Carvalho, da Safras & Cifras.

Um dos pontos mais sensíveis quando para a sucessão é a governança corporativa. “Muitos não fazem nem balanço. O que é da família se confunde com o que é da fazenda”, ressaltou Elias, sócio da consultoria responsável pelo curso.

A avaliação é confirmada entre os participantes da Academia de Sucessão. “Não tenho um salário. Quando tem alguma despesa, converso com o meu pai”, contou Alexandra Signorini, 27 anos. Formada em engenharia ambiental, ela ajuda na área administrativa da fazenda da família em Canarana, na porção nordeste de Mato Grosso.

“Eu recebo em sacas de soja pelo meu trabalho”, contou Artur Yoshimine Santini, de 29 anos, também de Canarana. Ele e a mãe, que também foi herdeira, cuidam dos negócios agropecuários da família. O pai, dentista, não participa do cotidiano da propriedade.

A ausência de balanço estruturado predomina entre os participantes do curso. Muitos ainda registram as entradas e saídas durante o mês em livro-caixa. Durante o curso, um assalto deixou uma fragilidade comum evidente. “Levaram o computador. Lá estavam todos os dados da fazenda que eu estava organizando”, contou Elisângela, da Bahia. “Ainda estava arrumando as informações. Não tenho backup”, reconheceu ela.

“Muitas decisões dos pais dessa galera ainda são tomadas na base do sentimento, e não dos números. Mas os herdeiros precisam aprender a agir analisando indicadores, porque não têm 20 anos de negócio como os pais”, disse Elias.

Esposa de um produtor rural, a engenheira agrônoma Lidiane Floresta Kikodone, 33 anos, participou do curso com uma motivação diferente dos demais. Ela quer saber como preparar os herdeiros, ela tem um filho de um ano e meio. “Sou funcionária da fazenda do meu esposo. Faço o planejamento das operações a vou para a fazenda a cada 15 dias”, disse ela. Lidiane cursa mestrado em agronegócio na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Antes de casada, trabalhou muitos anos na indústria de agroquímicos e já viveu na pele os desafios da gestão familiar.

“Minha família chegou a ter terras, mas vários problemas dentro da família fizeram o negócio se desfazer. Quero saber como preparar meu filho para o amanhã. É importante desde cedo ele saber como pagamos as contas e continuar o negócio do pai”, disse.

A iniciativa de Lidiane é muito rara. “Em geral, os pais não pensam em como preparar a sucessão. As coisas vão acontecendo”, disse Elias, da Safras & Cifras. A experiência geral vai na contramão do recomendado pela literatura. O tempo de aprendizagem é fundamental para um processo de sucessão saudável. “É mesmo com o tempo que as coisas vão se organizando. Tentamos minimizar os efeitos aqui”, resumiu o consultor.



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