Quinta, 21 Novembro 2024

Holanda, o pequeno país que alimenta o mundo Destaque

Escrito por  Out 01, 2019

Um batatal perto da fronteira da Holanda com a Bélgica, o agricultor Jacob van den Borne está sentado na cabina de uma ceifeira-debulhadora, diante de um painel de instrumentos digno de uma nave espacial. A três metros acima do solo, ele controla dois veículos não tripulados que fornecem dados pormenorizados sobre a composição química do solo, o teor de água, nutrientes e crescimento, medindo a evolução de cada planta. Os valores de produção de Jacob van den Borne atestam a capacidade desta “agricultura de precisão”. O rendimento médio das batatas por hectare, a nível mundial, é de cerca de vinte toneladas. Os campos de Van den Borne produzem fiavelmente mais de 47.

Este rendimento abundante ainda se torna mais admirável quando se leva em conta o outro lado da folha de balanço: os recursos aplicados. Há quase duas décadas, os holandeses assumiram um compromisso nacional, escolhendo como divisa: “Duas vezes mais alimentos, utilizando metade dos recursos”. Desde 2000 que Jacob van den Borne e muitos colegas agricultores têm vindo a reduzir a dependência das culturas principais em relação à água até 90%. Eliminaram quase por completo a utilização de pesticidas químicos nas plantas cultivadas em estufas e, desde 2009, os empresários holandeses da avicultura e da pecuária introduziram cortes na utilização de antibióticos até 60%.



Outro motivo para admiração: a Holanda é um país pequeno e densamente povoado, com mais de 500 habitantes por quilómetro quadrado. Carece de quase todos os recursos há muito considerados necessários a uma agricultura de grande escala. E contudo é o segundo exportador mundial de géneros alimentares, superado apenas pelos Estados Unidos, cuja massa terrestre é 270 vezes maior. Como é então possível que os holandeses tenham conseguido este feito?
Vista a partir de um avião, a Holanda não se parece com mais nenhum dos grandes produtores mundiais de géneros alimentares. Forma um mosaico fragmentado de campos de cultura intensiva, a maioria dos quais minúsculos à luz dos padrões da indústria agro-alimentar, entremeados com cidades e subúrbios. Nas principais regiões agrícolas do país, quase não existe batatal, nem estufa, nem suinicultura de onde não se aviste um arranha-céus, uma unidade industrial ou uma urbanização. Mais de metade da superfície terrestre nacional é utilizada para a agricultura e a horticultura.

Extensões a perder de vista daquilo que parecem ser espelhos mastodônticos revestem os campos. São os extraordinários complexos de estufas da Holanda, alguns dos quais com 70 hectares.
Os holandeses são igualmente o maior exportador mundial de batatas e cebolas e o segundo maior exportador mundial de legumes, globalmente e em termos de valor. Mais de um terço da totalidade do comércio mundial de sementes de legumes tem origem na Holanda.
O cérebro responsável por estes números impressionantes está sediado em Wageningen University & Research (WUR), 80 quilómetros a sudeste de Amsterdão. Geralmente considerada a mais importante instituição de investigação agrária a nível mundial, a WUR é o ponto-chave do Vale dos Alimentos (ou Food Valley), um robusto conjunto formado por empresas tecnológicas inovadoras e explorações agrícolas experimentais. Este nome é uma referência propositada ao Silicon Valley da Califórnia, já que a Universidade de Wageningen reproduz o papel desempenhado pela Universidade de Stanford na fusão entre mundo académico e espírito empresarial.

Ernst van den Ende, director-geral do Grupo de Ciências Botânicas da WUR, simboliza esta abordagem conjunta no Vale dos Alimentos.
Ernst é uma autoridade mundial em patologia vegetal, mas, como nos explica, “não sou só o director de um departamento na universidade. Metade de mim dirige as Ciências Botânicas, mas a outra metade ocupa-se da supervisão de nove unidades de negócio empenhadas na pesquisa de contratos comerciais”. Só esse esforço combinado, “o enfoque na ciência e o enfoque no mercado poderá enfrentar os desafios do futuro”, resume.
O planeta precisa de produzir “mais géneros alimentares nas próximas quatro décadas do que todos os agricultores do mundo colheram nos últimos oito mil anos”. Em 2050, a Terra terá 9 a 10 mil milhões de habitantes, ao passo que hoje alberga sete mil e quinhentos milhões de habitantes. Se não se concretizarem aumentos do rendimento agrícola, acompanhados de reduções do consumo de água e de combustíveis fósseis, mil milhões (ou mais) de pessoas poderão morrer de fome.

A fome será o problema mais urgente do século XXI e os visionários que trabalham no Vale dos Alimentos acham que descobriram soluções inovadoras. Os meios para impedir uma crise de carência alimentar catastrófica estão ao nosso alcance, insiste Van den Ende. O seu optimismo baseia-se na informação fornecida por mais de mil projectos desenvolvidos pela WUR em mais de 140 países e nos acordos formais celebrados pela instituição com Estados e universidades em seis continentes para partilha dos progressos realizados e sua implementação.
Uma conversa com Ernst van den Ende é como dar uma volta numa montanha-russa de debate de ideias, estatísticas e previsões. A seca em África? “A água não é o problema essencial. É a pobreza dos solos”, afirma. “A inexistência de nutrientes pode ser compensada pelo cultivo de plantas que funcionem em simbiose com certas bactérias, de maneira a produzirem o seu próprio adubo.” E o custo galopante dos cereais para alimentação animal? “Alimentem os animais com gafanhotos em vez de cereal”, responde.

A conversa precipita-se na direcção do uso de iluminação LED para viabilizar o cultivo em estufas com controlo climático rigoroso 24 horas por dia. De seguida, desvia-se para a percepção errónea de que a agricultura sustentável significa intervenção humana mínima na natureza.
“Basta olhar para a ilha de Bali!” exclama. Há pelo menos mil anos que os agricultores da ilha criam patos e peixe nas mesmas lagoas inundadas onde cultivam o arroz. É um sistema alimentar totalmente auto-suficiente, irrigado por complexos sistemas de canais que percorrem socalcos de montanha esculpidos por mãos humanas.

Os EUA ocupam o terceiro lugar em termos de produção e de rendimento; a China utiliza mais solo para cultivar o tomate, detendo a liderança mundial em volume de produção, apesar do rendimento médio por quilómetro quadrado; a Nigéria possui a terceira maior área de plantação de tomate, mas obtém um rendimento baixo.

Mais com menos - O recurso a inovações em larga escala, como a agricultura hidropónica (o cultivo de plantas sem solo graças a soluções ricas em nutrientes), reduz o escorrimento, poupando água e dinheiro.

O futuro da agricultura sustentável está a ganhar forma em todos os cantos da Holanda – não nas salas dos conselhos de administração de empresas gigantes, mas em milhares de explorações agrícolas familiares de pequena dimensão. É possível vê-la, vibrante, no paraíso terrestre de Ted Duijvestijn e dos irmãos Peter, Ronald e Remco. À semelhança dos balineses, os irmãos Duijvestijn construíram um sistema alimentar auto-suficiente.
No complexo de estufas de 14,5 hectares da família Duijvestijn, perto da histórica cidade de Delft, os visitantes passeiam entre tomateiros profundos com seis metros de altura. Deitando raízes não no solo mas em fibras tecidas a partir de basalto e gesso, as plantas apresentam-se carregadas de tomate (num total de 15 variedades) para satisfazerem os palatos mais exigentes. Em 2015, um júri internacional de peritos em horticultura atribuiu aos Duijvestijn o título de cultivadores de tomate mais inovadores do mundo.

Em 2004, após setenta anos de funcionamento, os produtores mudaram a localização da sua velha exploração agrícola e reestruturaram-na. Anunciaram então a sua independência de recursos em todas as frentes. A quinta produz quase toda a energia e adubo necessários e até parte dos materiais de embalagem destinados à distribuição e venda do tomate. O ambiente de cultivo é mantido a temperaturas ideais durante todo o ano através do calor gerado por aquíferos geotérmicos que fervilham no subsolo em pelo menos metade da Holanda.

A única fonte de irrigação é a água da chuva, segundo Ted, responsável pelo programa de cultivo. Cada quilograma de tomate requer menos de 14 litros de água, comparado com os 60 litros exigidos por plantas em campo aberto. As poucas pragas que conseguem penetrar nas estufas dos Duijvestijn são recebidas por um exército esfomeado de defensores, entre os quais o feroz Phytoseiulus persimilis, um ácaro predador que não mostra qualquer interesse pelo tomate mas devora sozinho centenas de invasores.
Alguns dias antes, Ted participou numa reunião de agricultores e investigadores em Wageningen. “É desta maneira que encontramos formas inovadoras de progredir”, explicou. “Gente de toda a Holanda reúne-se para discutir perspectivas diferentes e objectivos comuns. Ninguém conhece todas as respostas sozinho.”

A busca de respostas para uma pergunta decisiva deu origem a uma das empresas mais inovadoras da Holanda. Há meio século, Jan Koppert cultivava pepinos usando pulverizadores com substâncias químicas tóxicas para eliminar as pragas. Quando um médico o informou que era alérgico aos pesticidas, Jan decidiu aprender tudo o que podia sobre os inimigos naturais dos insectos e dos aracnídeos.

A Koppert Biological Systems é actualmente a empresa que marca o ritmo no mercado mundial de controlo de pragas biológicas e doenças, com 1.330 funcionários e 26 subsidiárias internacionais que comercializam os seus produtos em 96 países. A empresa tem capacidade para fornecer sacas de algodão com larvas de joaninhas que, ao atingirem a maturidade, se transformam em consumidores vorazes de afídeos. Também vende os ácaros predadores que caçam insectos invasores nas plantas e sugam-nos até os dessecarem por completo. Outra solução imaginativa é um frasco com 500 milhões de nemátodos que organizam ataques mortíferos contra as larvas de mosca que devoram os cogumelos de produção comercial.
As legiões de Koppert fazem o amor e a guerra, sob o disfarce de abelhões entusiásticos, fertilizando os ovários das plantas. Cada colmeia de Koppert contribui com visitas diárias a meio milhão de flores. Os agricultores que utilizam abelhas costumam normalmente registar aumentos de 20 a 30% nos rendimentos e peso da fruta, com um custo de menos de metade da polinização artificial.
Não há nenhum país do globo que domine tão bem a tecnologia das sementes. E em nenhum outro domínio são mais acesas as polémicas que rodeiam o futuro da agricultura. A maior delas é o desenvolvimento de organismos geneticamente modificados (OGM) para gerar colheitas maiores e mais resistentes às pragas. Para os seus críticos, os OGM representam um cenário carregado de incertezas quanto às consequências da experimentação radical com entidades vivas.

As empresas holandesas encontram-se entre os líderes mundiais do negócio das sementes e o valor das exportações de 2016 rondou os 1.450 milhões de euros. No entanto, não comercializam produtos geneticamente modificados. Uma nova variedade de sementes no altamente regulado sector europeu dos OGM pode custar 86 milhões de euros e exigir 12 a 14 anos de investigação, diz Arjen van Tunen, da KeyGene. Em contrapartida, os mais recentes avanços na ciência da reprodução molecular (sem introdução de genes exógenos) podem proporcionar ganhos consideráveis em 5 a 10 anos, com custos de desenvolvimento habitualmente situados abaixo de 80 mil euros e raramente superiores a 850 mil euros.
A reprodução molecular é descendente directa dos métodos utilizados pelos agricultores do Crescente Fértil há dez mil anos.
O catálogo de vendas de Rijk Zwaan, outro agricultor holandês, inclui sementes de rendimento elevado em mais de 25 grupos de legumes, muitos dos quais capazes de defender-se contra as pragas mais graves. Heleen Bos é responsável pelas secções de sementes biológicas e pelos projectos de desenvolvimento internacionais da empresa. Uma única semente de tomate tecnologicamente avançada, de preço inferior a 40 cêntimos, é capaz de produzir 70 quilogramas de tomate. Heleen Bos, porém, prefere falar sobre as centenas de milhões de pessoas que não dispõem de alimentos em quantidade suficiente no planeta.

 A reprodução molecular é descendente directa dos métodos utilizados pelos agricultores do Crescente Fértil há dez mil anos.

 À semelhança de muitos empresários do Vale dos Alimentos, Heleen trabalhou nos campos e cidades dos países mais pobres do mundo. Com missões demoradas em Moçambique, Nicarágua e Bangladesh nos últimos 30 anos, ela sabe que a fome e as crises de carência alimentar devastadoras não são ameaças abstractas.
“Não seremos capazes de pôr imediatamente em prática nesses países o tipo de agricultura tecnologicamente avançada que praticamos na Holanda”, diz. “Mas já estamos bastante avançados na introdução de soluções de tecnologia média que podem fazer grande diferença.” Faz referência à proliferação de estufas de plástico relativamente baratas que triplicaram o rendimento de algumas culturas em comparação com os cultivos em campo aberto, onde as culturas se encontram mais vulneráveis a pragas e à seca.
Desde 2008 que Rijk Zwaan dá apoio a um programa de reprodução de sementes na Tanzânia, num campo experimental de 20 hectares à sombra do monte Kilimanjaro. Há projectos de colaboração em curso no Quénia, Peru e Guatemala. “Mantemos um diálogo constante, de enorme importância, com os pequenos agricultores sobre as suas necessidades, as condições climáticas e do solo e os custos”, esclarece.

A Holanda foi o último país ocidental a sofrer uma crise grave de carência alimentar, quando 10 a 20 mil pessoas morreram durante a ocupação alemã nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial.
Décadas mais tarde, Rudy Rabbinge, professor jubilado de Desenvolvimento Sustentável e Segurança Alimentar na WUR, abraçou esta causa ao contribuir para a introdução de alterações profundas no corpo docente, no corpo discente e no currículo da WUR que transformaram a instituição naquilo a que ele chama “uma universidade para o mundo e não apenas para os holandeses”. Actualmente, uma parcela significativa das actividades académicas e científicas da WUR foca-se nos problemas dos países pobres.

Cerca de 45% dos estudantes de pós-graduação, incluindo quase dois terços dos candidatos a doutoramento, são recrutados no estrangeiro e vêm de mais de cem países. Os alunos asiáticos, encabeçados pelos chineses e pelos indonésios, ultrapassam em número quase todos os europeus não-holandeses somados. Antigos alunos da WUR encontram-se em posições de topo em ministérios da Agricultura africanos, asiáticos e latino-americanos.

Numa cafetaria da cidade universitária, sento-me na companhia de três dos mais promissores alunos da WUR. São três mulheres, originárias do Uganda, do Nepal e da Indonésia.

“Travei conhecimento com uma antiga aluna de Wageningen quando frequentava a licenciatura, no Uganda”, conta Leah Nandudu, quando lhe pergunto como veio aqui parar. “Ela era especialista na definição de fenótipos”, a área de estudos avançados que traça o retrato pormenorizado das características e potencial de uma planta. “Foi inspirador descobrir que uma africana poderia fazer este tipo de coisas. Ela era o futuro: era o rumo que eu precisava de tomar.”
O encontro acabou por conduzir Leah até uma bolsa da WUR. O seu pai cultiva um hectare de terra, dividido entre café e bananas.“Enfrentamos os mesmos problemas dos agricultores de hoje em todo o mundo, só que muito piores, sobretudo devido às consequências das alterações climáticas.”

Pragya Shrestha cresceu no meio rural nepalês, parte do qual foi devastado por longos anos de utilização de pesticidas e adubos. Até agora, o recurso a métodos mais fiáveis e sustentáveis fez poucos progressos.

“O problema é político”, afirma. Não é possível desenvolver métodos novos de cultivo por falta de financiamento público. “É também um problema populacional, devido à fragmentação da terra em parcelas cada vez mais pequenas, situação que só serve para o uso de trabalho humano ineficiente e gera um rendimento muito baixo.”

Renna Eliana Warjoto viajou de Bandung, a terceira maior cidade da Indonésia. “As pessoas  [no meu país] desconfiam das ideias vindas do estrangeiro”, afirma, enquanto Pragya e Leah acenam com a cabeça. “Os agricultores estão tão habituados a vidas e rendimentos marginais que lhes custa acreditar que as coisas podem ser diferentes”, acrescenta.

O número de pessoas ameaçadas pela fome em apenas três países africanos e na outra margem do mar Vermelho, no Iémen, é hoje superior a 20 milhões segundo a ONU e está a aumentar de forma implacável. “Enfrentamos hoje a maior crise humanitária desde a fundação da ONU,” avisou em Março Stephen O’Brien, coordenador para a ajuda de emergência da organização.
“A nossa tarefa mais difícil é mudar as percepções da nossa gente sobre a crise com que nos confrontamos e o que precisamos de fazer para resolvê-la”, afirma Leah Nandudu. “Esse vai ser o meu trabalho quando regressar ao meu país. Não podemos virar as costas à realidade.”

Cerca de 6.600 quilómetros a sul de Wageningen, num feijoal familiar no vale do Rifte Oriental, em África, uma equipa da SoilCares, uma empresa holandesa do sector tecnológico agrícola, explica as funções de um pequeno dispositivo portátil. Juntamente com uma aplicação de telemóvel, o dispositivo analisa o PH, a matéria orgânica e outras propriedades do solo, carregando de seguida os resultados numa base de dados holandesa e enviando de volta um relatório pormenorizado sobre a utilização optimizada de adubos e as necessidades de nutrientes – tudo em menos de dez minutos. Custando poucos euros, o relatório fornece informações que podem ajudar a reduzir perdas nas colheitas em margens enormes a agricultores que nunca tiveram acesso a qualquer tipo de amostragem do solo.

Menos de 5% do total estimado de 570 milhões de explorações agrícolas no planeta têm acesso a um laboratório de solos.

National Geographic

  • Última modificação em Terça, 01 Outubro 2019 16:33
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