A batida de martelo em 28 de março deste ano, que garantiu à empresa Rumo, do Grupo Cosan, a concessão por 30 anos de trecho da Ferrovia Norte-Sul, entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste (SP), foi saudada como histórica pelo governo e gerou expectativa de que as ferrovias possam receber mais investimentos da iniciativa privada nos próximos anos, revertendo os anos de abandono. Foi o primeiro leilão do setor em dez anos.
“É um marco. Um dia histórico de retomada do setor ferroviário no Brasil e muito mais vai se fazer pelas ferrovias”, anunciou o ministro da Infraestrutura, Tarcisio Freitas, no leilão em que o governo arrecadou R$ 2,7 bilhões, com ágio de 100,9%. A Rumo, resultante da fusão da Rumo Logística e da América Latina Logística (ALL), tem dois anos para iniciar a operação da linha.
A construção da Norte-Sul, projetada com extensão de 4.783 quilômetros para ser a espinha dorsal da malha ferroviária brasileira, se arrasta há mais de 30 anos. As obras começaram em 1987. “Essa ferrovia demorou quase 40 anos para chegar a São Paulo, percorrendo terrenos planos da região central. Duvido muito que algum dia chegue ao sul do país”, afirma Wagner Cardoso, gerente executivo de infraestrutura da CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Logística, Infraestrutura e Supply Chain da Fundação Dom Cabral, é mais otimista. Segundo ele, a FNS pode chegar ao Sul no prazo de 15 anos se a construção e operação forem transferidas para a iniciativa privada, que tem capacidade de imprimir a velocidade necessária à modernização e construção de trilhos.
“Herdamos uma rede antiga de ferrovias e hoje o setor público não tem recursos para investir em infraestrutura. É fundamental, então, estimular o setor privado para construir novas ferrovias e investir na modernização das linhas e equipamentos já existentes”, diz Claudio Frischtak, especialista em infraestrutura e presidente da Inter B Consultoria Internacional.
NOVAS MALHAS
Além da Norte-Sul, pelo menos mais três ferrovias importantes para o escoamento da produção agrícola do país devem entrar em operação nos próximos 15 anos, segundo fontes do governo, especialistas e produtores entrevistados pela reportagem. São elas: Ferrogrão (EF-170), Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e Fiol (Ferrovia de Integração Leste-Oeste). Todas estão incluídas no PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), órgão responsável pela coordenação de obras estratégicas de infraestrutura no país, ligado à Secretaria de Governo da Presidência da República.
Adalberto Vasconcelos, secretário especial do PPI, dá destaque para a Ferrogrão, projetada com 933 quilômetros para escoar a produção de grãos do Centro-Oeste, ligando Sinop (MT) ao Porto de Miritituba (PA). A ferrovia deve ter seu edital anunciado no segundo semestre deste ano e o leilão está previsto para 2020. “A iniciativa privada vai construir tudo e operar a ferrovia. Já temos vários players interessados no leilão, entre eles trading de grãos e grupos chineses”, afirma.
Pela primeira vez, a concessão de uma ferrovia terá prazo de 65 anos. “É uma ferrovia que vai começar do zero. É necessário um prazo longo para amortizar o investimento, previsto em R$ 12,7 bilhões.” O secretário estima que a ferrovia seja concluída em oito anos. O traçado da Ferrogrão acompanha a Rodovia BR-163, cuja manutenção deve ser concedida à iniciativa privada, em 2020, pelo prazo de dez anos. No papel, a projeção é que hoje essa ferrovia poderia transportar de 25 milhões a 27 milhões de toneladas de grãos e, em 2050, atinja mais de 45 milhões de toneladas. Para se ter uma ideia do que representa esse volume, Mato Grosso, maior produtor do país, colheu, no último ano, a safra recorde de 61 milhões de toneladas de grãos.
A Fiol, planejada com 1.527 quilômetros para escoamento dos produtos agrícolas do oeste baiano ao Porto de Ilhéus (BA), deve ter seu primeiro trecho, de pouco mais de 500 quilômetros, concedido em leilão também em 2020. A obra que liga Bahia e Tocantins está dividida em três partes. Duas estão sendo construídas pela estatal Valec. A terceira só existe no papel.
A Fico, projetada para ligar Goiás e Rondônia, com uma extensão de 1.641 quilômetros e que também só existe em estudos, terá um modelo diferente: a construção de seu primeiro trecho, de 383 quilômetros, deve ficar a cargo da Vale S.A. como moeda de troca pela antecipação da renovação da concessão da Ferrovia Vitória-Minas.
Segundo o Ministério da Infraestrutura, também haverá renovação antecipada de outros quatro contratos de concessão já existentes: Rumo Malha Paulista, Estrada de Ferro Carajás (EFC), MRS Logística e Ferrovia Centro-Atlântica (FCA). Para Adalberto Vasconcelos, a medida, prevista na lei 13.448, de junho de 2017, é uma forma criativa de assegurar investimentos para melhoria e expansão da malha ferroviária, em vez de o dinheiro das outorgas seguir direto para o Tesouro.
EXCLUSIVIDADE
As cinco empresas beneficiadas pela renovação antecipada perderão o direito de exclusividade de uso da linha. No total, pelas contas do ministério, os dez projetos previstos na área ferroviária somam 16.697 quilômetros de extensão e representam mais de R$ 60 bilhões em investimentos.
O secretário do PPI afirma que 65% do transporte de cargas no Brasil hoje é feito pelo modal rodoviário e apenas 16% pelo ferroviário. Com as obras previstas de infraestrutura, o plano é que passem pelos trilhos 33% da carga a partir de 2025. “Se concluir os investimentos previstos no PPI, a partir de 2025, o país vai deixar de perder R$ 54 bilhões por ano com o transporte de cargas”, afirma Wagner.
Os projetos incluídos no PPI, especialmente os da Ferrogrão e Fiol, agradam o presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), Bartolomeu Braz Pereira. Ele diz que o governo está aproveitando estudos de levantamento logístico entregues pelos produtores de grãos há nove anos, com as necessidades do setor de corredores ferroviários e hidroviários, especialmente na região central e no Matopiba, para se manter competitivo no mercado global.
Bartolomeu diz que agora há grupos interessados, entre eles chineses, em investir em ferrovias. “Era muito difícil obter licenças ambientais e combater a burocracia e a ideologia no Brasil. Mas isso agora está sendo revisto pelo novo governo. Voltamos a ter credibilidade junto aos investidores.”
Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter B, projeta uma atividade mais intensa em construção de ferrovias nos próximos anos. Além da Norte-Sul, Fiol, Fico e Ferrogrão, ele cita, entre os projetos principais que devem sair do papel nos próximos 15 anos, a Nova Transnordestina, de 1.753 quilômetros, que ligará o sertão do Piauí aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE), passando por 83 municípios. É outro projeto que se arrasta há alguns anos, mas haveria uma proposta da iniciativa privada para retomar a construção, paralisada há dois anos.
O especialista cita ainda como projetos prováveis de vingar em 15 anos a construção da conexão ferroviária entre Vitória (ES) e Rio de Janeiro, o FerroAnel (contorno da cidade de São Paulo), uma linha intercidades em São Paulo com trem misto (passageiros durante o dia e carga à noite) e um corredor de exportação por trilhos projetado pelo governo do Paraná.
PASSAGEM
A malha ferroviária brasileira tem apenas 29.200 quilômetros, enquanto as rodovias somam 1,72 milhão de quilômetros, sendo 213 mil quilômetros pavimentados. Segundo dados da CNT (Confederação Nacional dos Transportes), o índice de trilhos é de 3,6 quilômetros a cada 1.000 quilômetros de área territorial. Para comparação, nos EUA o índice é de 32 quilômetros de trilhos a cada 1.000 quilômetros.
O levantamento Transporte ferroviário: colocando a competitividade nos trilhos, da CNI, feito em 2018, com base em dados da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), mostrou outro problema grave: 30,6% da extensão de trilhos no país, ou 8.600 quilômetros, estão inutilizados. Desse total, 6.500 quilômetros não têm condições de operar por falta de manutenção e o restante está operacional, mas ocioso.
Para Wagner Cardoso, da CNI, resolver o problema dos trechos abandonados é um dos desafios a ser vencidos nos próximos anos. Os outros são aumentar a extensão da malha e garantir a conexão das ferrovias, adequando o modelo regulatório. “Ferrovia no Brasil parece saneamento básico: está muito atrasada. Apenas cinco ou seis grupos detêm toda a malha e falta fiscalização para impedir o abandono. A ANTT multa, a concessionária não paga e fica por isso mesmo.”
Segundo ele, a CNI apoia a prorrogação dos contratos, desde que seja exigido das empresas o compartilhamento da malha concedida. Na teoria, existem dois modelos de conexão no Brasil. No direito de passagem, o trem de outra empresa passa pela ferrovia pagando um valor ao concessionário. No tráfego mútuo, o visitante compartilha recursos com a empresa que explora a linha, geralmente mantendo sua locomotiva e usando os vagões da outra. Wagner sugere a inclusão do modelo do transportador independente, que aluga uma locomotiva para levar determinada carga na janela de operação da dona da linha.
Fonte: Revista Globo Rural.